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quarta-feira, 21 de maio de 2014

Glossário.Imagem-Movimento. Gilles Deleuze.

Sobre o Autor
Gilles Deleuze (1925) publicou inúmeros livros, entre os quais
Empirismo e Subjetividade; Nietzsche e a Filosofia; A Filosofia de Kant;
Marcel Proust e os Signos; O Bergsonismo; Diferença e Repetição; Francis
Bacon: Lógica da Sensação; Spinoza e Lógica do Sentido. Em colaboração
com Félix Guattari, escreveu Kafka, Por uma Literatura Menor, O AntiÉdipo
e Rizoma.

Glossário


Imagem-movimento: conjunto acentrado de elementos variáveis que
agem e reagem uns sobre os outros.

Centro de Imagem: hiato entre um movimento recebido e um
movimento executado, uma ação e uma reação (intervalo).

Imagem-percepção: conjunto de elementos que agem sobre um
centro, e que variam em relação a ele.

Imagem-ação: reação do centro ao conjunto.

Imagem-afecção: o que ocupa o hiato entre uma ação e uma reação,
o que absorve uma ação exterior e reage no interior.

IMAGEM-PERCEPÇÃO (a coisa).

Dicissigno: termo criado por Peirce para designar sobretudo o signo
da propo-sição em geral. Empregado aqui em relação ao caso especial do
"discurso indireto livre" (Pasolini). E uma percepção no quadro de uma
outra percepção. E o estatuto da percepção sólida, geométrica e física.

Reuma: não confundir com o "rema" de Peirce (palavra). E a
percepção daquilo que atravessa o quadro ou flui. Estatuto liquido da
percepção nela mesma.

Grama (engrama ou fotograma): não confundir com uma foto. E o
elemento genético da imagem-percepção, inseparável como tal de certos
dinamismos (imobilização, vibração, pisca-pisca, anel, repetição,
aceleração, câmera lenta, etc.). Estatuto gasoso de uma percepção
molecular.

IMAGEM-AFECÇÃO (a qualidade ou a potência).

Ícone: utilizado por Peirce para designar um signo que remete a seu
objeto em virtude de caracteres internos (semelhança). Empregado aqui
para designar o afeto enquanto expresso por um rosto, ou por um
equivalente de rosto.

QualIssigno (ou potissigno): termo criado por Peirce para designar
uma qualidade que é um signo. Empregado aqui para designar o afeto
enquanto expresso (ou exposto) num espaço qualquer. Um espaço
qualquer é ou um espaço esvaziado, ou um espaço cuja junção das partes
não é fixa ou fixada.

Dividual: o que não é nem indivisível nem divisível, mas que se divide
(ou se junta) mudando de natureza. É o estatuto da entidade, isto é, do
que é expressado numa expressão.


IMAGEM-PULSÃO (a energia).

Sintoma: designa as qualidades ou potências reportadas a um mundo
originário (definido por pulsões).

Fetiche: pedaço arrancado pela pulsão em um meio real, e
correspondente ao mundo originário.

IMAGEM-AÇÃO (a força ou o ato).

Synsigno (ou englobante): corresponde ao "sinsigno" de Peirce.
Conjunto de qualidades e de potências enquanto atualizadas num estado
de coisas, constituindo, por conseguinte, um meio real em torno de um
centro, uma situação em relação a um sujeito: espiral.

Vestígio: vínculo interior entre a situação e a ação.
Índice: utilizado por Peirce para designar um signo que remete a seu
objeto em virtude de um vínculo de fato. Empregado aqui para designar o
vínculo de uma ação (ou de um efeito de ação) com uma situação que não
é dada, mas apenas inferida, ou então que permanece equívoca e passível
de ser revirada. Distinguem-se nesse sentido índices de falta e índices de
equivocidade: os dois sentidos da elipse.

Vetor (ou linha de universo): linha quebrada que une pontos
singulares ou momentos notáveis no ápice de sua intensidade. O espaço
vetorial se distingue do espaço englobante.

IMAGEM DE TRANSFORMAÇÃO (a reflexão).

Figura: signo que, em vez de remeter a seu objeto, reflete um outro
(imagem cenográfica ou plástica); ou então que reflete seu próprio objeto,
mas invertendo-o (imagem invertida); ou então que reflete diretamente
seu objeto (imagem discursiva).

IMAGEM MENTAL (a relação).

Marca: designa as relações naturais, isto é, os aspectos sob os quais
imagens são ligadas por um hábito que faz passar de umas para as
outras. A des-marca designa uma imagem arrancada às suas relações
naturais.

Símbolo: utilizado por Peirce para designar um signo que remete a
seu objeto em virtude uma lei. Empregado aqui para designar o suporte
de relações abstratas, isto é, de uma comparação de termos
independentemente de suas relações naturais.

Opsigno e consigno: imagem ótica e sonora pura que rompe os
vínculos sensório-motores, extravasa as relações e não se deixa mais
exprimir em termos de movimento, mas se abre diretamente sobre o
tempo.



Referencia: DELEUZE, Gilles. A imagem-movimento: cinema 1. 2. ed. Lisboa: Assírio & Alvim, 2009. 329 p. (Livros de cinema ; 6)

sexta-feira, 28 de março de 2014

FOUCAULT SEGUNDO DELEUZE

 FOUCAULT SEGUNDO DELEUZE

O filósofo Gilles Deleuze, em uma de suas homenagens póstumas ao historiador Michel Foucault (1), comparou-o a um ‘novo Marx’, devido à sua forma revolucionária de entender o Poder. Para Deleuze, Foucault foi o principal teórico da contracultura, derrubando, em seu livro Vigiar e Punir (2), uma série dos postulados tradicionais do pensamento de esquerda.

O Postulado da Propriedade, segundo o qual o poder seria ‘propriedade’ de uma classe que o teria conquistado. Para Foucault, o poder não é uma apropriação mas um conjunto de estratégias materializadas em práticas, técnicas e disciplinas diversas e dispersas. “Ele se exerce mais do que se possui, não é um privilégio adquirido ou conservado da classe dominante, mas o efeito de conjunto de suas posições estratégicas”.

O Postulado do Atributo, conforme o qual o poder teria uma essência e um atributo. Segundo Foucault, o poder não tem essência, é operatório; ele também não é um atributo, mas uma relação de forças que perpassa todo campo social, envolvendo dominadores e dominados.

O Postulado da Subordinação, pelo qual, o poder, encarnado no aparelho de estado, estaria subordinado a um modo de produção ou, em última instância, a uma infra-estrutura econômica. Para Foucault, o poder é diretamente ‘produção’, ele é imanente à produção social e não comporta nenhum tipo de unificação transcendente ou centralização globalizante.

O Postulado da Localização, que entende o Estado e a esfera pública como centro do poder. Foucault, ao contrário, vê o poder microfisicamente disperso em uma multiplicidade de disciplinas e de manobras táticas: o poder não nem global nem local, mas difuso infinitesimal.

O Postulado da Modalidade, de acordo com o qual, o poder agiria ora por coerção, ora por consenso. E em Foucault, o poder produz a verdade antes de mascará-la na ideologia; o poder produz a realidade antes de forçar o seu enquadramento através da violência.

O Postulado da Legalidade, pelo qual a lei é expressão contratual do poder. Para Foucault, a lei não é uma regra normativa para regulamentar a vida social em tempos de paz, mas a própria guerra das estratégias de uma determinada correlação de forças.

Bem vistas as coisas, esses postulados ainda são insuficientes para entender a importância da revolução metodológica proposta pelo pensamento foucaultiano se o confrontarmos com outras influências. Em relação a Freud, por exemplo, também podemos perceber a queda de pelo menos dois postulados tradicionais em A Vontade de Saber (3):

O Postulado do Recalcamento, segundo o qual a sociedade reprime os desejos e instintos dos indivíduos. Para Foucault, não existe repressão sexual, o que há é uma ‘interjeição’, onde o sexo é proibido e escondido apenas para ser incitado e incessantemente revelado. Ou seja: as categorias de ‘repressão/interdição’ são substituídas pela de ‘controle’.

O Postulado Hermenêutico do Desejo, segundo o qual há, por detrás de qualquer ação humana, um sentido oculto a ser descoberto. Foucault rebela-se contra a confissão como ‘um critério de verdade’ e acredita que ela constitui uma estratégia do poder.

Pensamos, porém, que a grande contribuição filosófica de Foucault se deve ao seu diálogo intelectual com Nietzsche, de onde também podemos extrair dois postulados epistemológicos - aparentemente contrários:

O Postulado da Morte do Homem, enunciado nas últimas páginas de um de seus primeiros livros, As Palavras e as Coisas (4), quando Foucault, em uma analogia explícita à morte de Deus nietzschiana, rejeita a idéia tradicional de um sujeito cartesiano do conhecimento.

O Postulado da Ressurreição de Si, enunciado na introdução dos seus últimos livros, O Uso dos Prazeres e O Cuidado de Si (5), em que Foucault estudará a formação de um ‘sujeito do desejo’ nos gregos e nos latinos.

O tema de nascimento, morte e ressurreição do sujeito na filosofia ocidental volta a ser uma das principais discussões contemporâneas. Entretanto, são poucos os que vêem uma solução nesse processo de iniciação do social no simbólico. Para que se coloque a questão do ressurgimento do simbólico corretamente, sem confundi-la com o ‘retorno às superestruturas’ ou à subjetividade pré-científica é necessário entender como a trajetória geral do pensamento foucaultiano deu origem ao um 'Diagrama', isto é, ao conjunto simultâneo de fatores sobrepostos: o Saber, o Poder e o Si.

DIAGRAMA DE FOUCAULT SEGUNDO DELEUZE

LIVROS
PROJETOS
História da Loucura
As palavras e as coisas
O Nascimento da Clínica
ARQUEOLOGIA DO SABER
(Formas x forças)
Vigiar e Punir
Vontade de Saber
Microfísica do Poder (coletânea brasileira)
GENEALOGIA DO PODER
(ou o lado de fora)
O Uso dos Prazeres
Cuidado de Si
ESTÉTICA DA EXISTÊNCIA
(ou lado de dentro)

            Em seus primeiros trabalhos, Foucault irá se definir pelo método arqueológico e estudará prioritariamente o ‘saber’. Entretanto, este saber será sempre um duplo de uma determinada correlação de forças. Daí o primado do ‘dizer’ sobre o ‘ver’, dos enunciados sobre as formas não-discursivas, uma vez que a linguagem tem um sentido e este sentido é politicamente imposto. Assim, para desvendar o verdadeiro sentido deste saber duplicado seria necessário construir uma genealogia do poder. E este projeto foi iniciado em Vigiar e Punir. O aparecimento da instituição carcerária e do direito penal são o pano de fundo para a construção de uma analítica do poder. Tratava-se então da ‘emissão e distribuição de singularidades, dos vetores não estratificados que agem através do saber, vindos do lado de fora’.

            Já na conclusão de A Vontade de Saber, Foucault esboça pela primeira vez uma explicação geral de todo seu trabalho anterior. O manicômio, a clínica, o presídio e toda arqueologia descontínua das instituições se explicariam por uma mudança na forma através do qual o poder se exerce: do poder baseado na morte e na punição exemplar para o poder das punições simbólicas e administrativas. A cumplicidade involuntária de Foucault com o poder foi denunciada impiedosamente por Jean Baudrilard (6). Para ele, ao descrever o poder como algo que engloba todas as resistências, Foucault teria anulado qualquer possibilidade de mudança estrutural de nossa sociedade.

            E, nos últimos livros, mesmo sem responder diretamente, Foucault adota uma mudança importante: o ressurgimento da subjetividade, do ‘lado de dentro’, não como uma entidade cognoscente, mas como uma auto-referência diante do poder e dos seus duplos, os discursos. O Uso dos Prazeres e O Cuidado de Si, fariam parte de uma terceira e última etapa do filósofo, em que seu objeto não seria mais o saber ou o poder, mas a procura de um ‘lado de dentro’. Mas talvez, a trágica doença responsável pela morte do filósofo, seja também a causa de uma relação de afeto consigo mesmo, de uma auto-referência discursiva diante do poder. Foi a morte que despertou a consciência de Si.

            Deleuze sustentará que o Si no final da História da Sexualidade não é um retorno ao sujeito antropocêntrico do conhecimento assassinado em As Palavras e as Coisas, mas sim de uma evolução 'para dentro', uma 'dobra' que amplia ainda mais o campo de investigação foucaultiano da crítica política à autoreferência ética. Também podemos observar a evolução esta mudança ainda, amplificando o período entre o primeiro é o último volumes da História da Sexualidade, através do desenvolvimento de suas aulas anuais no College de France (7).

            Observa-se que, desde 76, Foucault começa a ampliar o campo de sua investigação, não só passando do estudo das instituições para sociedade como um conjunto, mas também, a partir dos anos 80, ampliando o período histórico de seus estudos e discutindo práticas éticas clássicas
e latinas como formadoras de nossa concepção de verdade atual.

ANO
TEMA DA AULA
EMENTA DO PRÓPRIO FOUCAULT
1970/71
A vontade de saber
Configuração geral do estudo da penalidade na França, no século XIX e o início do psiquiatria penal.
1971/72
Teorias e instituições penais
Seguindo o estudo das práticas e conceitos médico-legais, o caso do assassino Pierre Rivière é analisado em especial.
1972/73
A sociedade punitiva
A prisão como paradigma de organização da cidade moderna: o panoptismo.
1973/74
O poder psiquiátrico
A história da instituição e a arquitetura hospitalares.
1974/75
Os anormais
Análise das transformações da perícia psiquiátrica dos casos de monstruosidade até ao diagnóstico dos 'anormais'.
1975/76
"É preciso defender a sociedade"
Estudo da categoria de 'indivíduo perigoso' na psiquiatria criminal e nas teorias de responsabilidade civil do séc. XIX
1976/77
Não houveram Seminários
Não houveram Seminários
1977/78
Segurança, território e população
A passagem do estado territorial para o estado da população e o aparecimento de novos objetivos de governo.
1978/79
Nascimento da biopolítica
A racionalização das práticas de governo do estado moderno em relação à saúde pública e à vida social das cidades.
1979/80
Do governo dos vivos
O pensamento liberal, a confissão, o exame de consciência - o governo dos homens 'livres' e os mecanismos disciplinares
1980/81
Subjetividade e verdade
Como o sujeito de conhecimento se constitui em diferentes contextos históricos: as técnicas de si.
1981/82
A hermenêutica do sujeito
Para entender a idéia de 'governo de si', discute-se as práticas éticas clássicas e latinas, anteriores ao cristianismo.

            Tendo sempre a filosofia de Nietzsche como pano de fundo, houveram ainda vários encontros e participações entre os dois grandes pensadores franceses: o prefácio de Foucault ao Anti-Édipo (8), a conversa reproduzida na coletânea brasileira intitulada Microfísica do Poder (9). Porém, o grande encontro de Foucault com Deleuze é póstumo. No 'post-scriptum sobre as sociedades de controle', último capítulo do livro Conversações (10), Deleuze proclama o fim das instituições disciplinares e de confinamento estudadas por Foucault (a escola, a fábrica, o presídio, o hospital, o exército) e o aparecimento de novos dispositivos de controle 'em redes a céu aberto'.


PHYLLUM DO PODER POR FOUCAULT (SEGUNDO DELEUZE)
Sociedades de soberania
Poder emana do direito de morte do rei
Sociedades disciplinares
Poder a partir do confinamento e duração
Sociedades de controle
Poder baseado na moratória ilimitada (dívida infinita)

            Para Deleuze, o regime de moratória ilimitada mais do que levar a culpa (e o ressentimento) dos indivíduos contemporâneos a um estatuto de responsabilidade social, vai estabelecer um novo tipo de funcionamento do poder, ainda mais introjetado e subliminar que a disciplina: o controle contínuo a partir de um sistema númerico de cifras e senhas. Mas, ao contrário de muitos ciberfanáticos atuais, Deleuze não considera a sociedade de controle globalizado melhor que as antigas sociedades disciplinares (embora haja avanços: o atendimento médico domiciliar deve ser melhor que o hospital, os serviços comunitários para delitos leves devem ser melhores que o encarceramento, a empresa e a participação nos lucros são melhores que a fábrica e o salário). Para ele, o importante é descobrir formas de resistência a este novo poder .

            Dos diversos tipos de retorno que a cibercultura contemporânea pode significar (retorno ao arcaico, ao tradicional, ao simbólico), o mais interessante e menos visível é o regresso a um ‘Uso temperante dos Prazeres’. Porém, enquanto para os gregos a idéia de temperança era prescritiva e não normativa, nossa relação compulsiva com o consumo é involuntária. Aliás, alguém uma vez definiu a condição pós-moderna como a proibição do consumo estimulado. Deveras, o mesmo que Foucault disse sobre a repressão ao sexo serve também para o consumo. Talvez com a liberação sexual da contracultura, e, mais recentemente a AIDS, o centro da correlação de forças tenha se deslocado da genitalidade para a oralidade. Na pós-contracultura, as ginásticas e as dietas voltam a desempenhar um papel central no cotidiano, as asceses e os regimes corporais se colocam novamente. Somos hipnosugestionados a consumir pelos meios de comunicação e proibidos de fazê-lo por diferentes níveis de autoridade.

            Relevante neste sentido, é a questão das drogas e da dependência química. A noção foucaultiana de ‘modo de sujeição’ nos sugere que o poder tornou-se mais bioquímico que microfísico e que a principal estratégia atual consiste, na produção hipócrita de uma sociedade de viciados. Álcool, nicotina, cafeína, açúcar, remédios, mas, sobretudo, ilusões. Eis a mais cara e menos proibida das drogas: a TV. Aliás, o consumo de imagem e som é a única coisa gratuita em nossa sociedade. Ele interage diretamente com o universo alimentar formando um conjunto de necessidades e, principalmente, mantendo o indivíduo em níveis cada vez mais altos de stress emocional. Após séculos de sujeição sexual imposta pelo cristianismo, os mecanismos de poder geram agora uma nova tecnologia de controle: as formas psicoquímicas de subjetivação do sentimento de morte. A dependência química e as redes telemáticas fazem parte de uma única estratégia.

               
A morte pós-moderna é imanente a vida. Ela não é uma ameaça eventual, mas uma presença constante a cada segundo. E a antiga moral se tornou uma Anatomia do Ruído de nossas consciências. Somos comparáveis aos rádios e nossa mente, ao controle de sintonia. Por isso, os sete pecados capitais, mais do que compulsões do inconsciente, tornaram-se 'limites-meta' - ou, na linguagem corrente, 'couraças corporais', 'vibrações desequilibradas das sete energias' e outras imagens das freqüências agenciadas em rede.


Hoje existem várias leituras da obra de Foucault valorizando seus diversos méritos históricos e metodológicos (a nova história de Paul Veyne, por exemplo), mas apenas a leitura deleuziana atualiza a abordagem de Foucault para vida contemporânea e seus problemas atuais (consumo, dependência química e psicológica, artificialização do corpo, etc). Ou seja - como profetizou o próprio Foucault: 'o século será deleuziano' .

quinta-feira, 27 de março de 2014

I-Anti -Édipo:Uma Introdução À Vida Não-Fascista; Por Michel Foucault

Durante os anos 1945-65 ( penso na Europa ), havia uma maneira correta de pensar , um certo estilo discurso politico , uma certa ética do intelectual . Era preciso estar na intimidade com Marx , não deixar seus sonhos vagabundos  muito longe de Freud , e tratar os sistemas dos signos - O significante - como o maior respeito.Tais eram as três condições que tornavam aceitável esta ocupação singular que é o fato de escrever e de enunciar uma parte da verdade sobre si mesmo e sua época.
Depois viriam cinco anos breves anos., apaixonados, cinco anos de júbilo e de enigma.às postar do nosso mundo, o Vietnã, evidentemente , e o primeiro frande golpe levado aos poderes constituídos. Mas nos interiores de nosso muros, o que se passavam a  exatamente ? Uma Amálgama de política revolucionária´naria  e anti-repressiva? Uma guerra levada em duas frentes -a exploração social e a repressão psíquica ? Uma elevação da libido modulada pelo conflito de classes? É possível. Seja o que for , é por esta interpretação familiar  e dualista que se pretendeu explicar os acontecimentos deste anos . O sonho que  entre a I Guerra  Mundial e o acontecimento  do Fascismo , havia tido sob seus charme as Frações mais utopistas Da Europa -a Alemanha de Wilhem Reich e a França dos surrealistas -Havia retornado para abarcar a própria realidade ? Marx e Freud Iluminados pela mesma incandescência.
Mas foi bem isto que se passou?Tratou-se de uma retomada do projeto utópico dos anos 30, desta vez à escala da prática histórica ?Ou houve ao contrário , um movimento em direção às lutas politicas que não se conformavam maios com  o modelo prescrito pela tradição marxista. Em direção de uma experiencia e uma tecnologia do desejo que não eram mais freudianas? certamente Brandiram-se os velhos estandartes , mas o combate se deslocou e ganhou novas zonas.
O Anti-Édipo mostra , em primeiro lugar, a extensão do terreno coberto.Mas é preciso muito mais . ele não se dissipa no denigrimento dos velhos ídolos , mesmo se ele se diverte muito com Freud . E sobretudo , nos incita a ir mais longe.
Seria um erro ler o Anti-édipo como a nova referencia teórica  (sabe, esta famosa teoria que nos anunciaram tantas vezes :aquela que vai englobar, aquela que é absolutamente totalmente e tranquilizadora, aquela que , nos asseguram , da qual  - temos tanta necessidade , nesta época de dispersão e de especialização, de onde - a esperança desapareceu). Não é preciso procurar uma -filosofia- nesta profusão extraordinária de noções e de conceitos-surpresa: O Anti-Édipo não é um Hegel  escandaloso. A melhor maneira , creio eu, de ler O Anti-Édipo é abordando-o com uma arte no sentido em que se fala da -Arte erótica- , por exemplo. Apoiando-se sobre as noções aparentemente abstratas de multiplicidades , de fluxos, de dispositivos e de alternativas , a analise da relação do desejo com a realidade  e com a -Máquina- capitalista traz respostas a questões  concretas . Questões que se preocupam menos com o -porque- das coisas que com seu -Como- .Como se introduz o desejo no pensamento , no discurso, na ação?  Como o desejo pode e deve despender suas forças na esfera do politico e de intensificar no processo d mudança da a ordem estabelecida? Ars erotica, ars theorethica , ars politica. 
Dai os três adversários com os quais o anti -Édipo se encontra confrontando. Três adversários que não tem a mesma força que representam graus diversos de ameaça , e que o livro combate por diferentes meios.
1-Os ascetas políticos, os militantes morosos , os terroristas da teoria , aqueles que queriam preservar a ordem pura da politica e do discurso politico. Os Burocratas da revolução e os funcionários  da verdade.
2-Os deploráveis técnicos do desejo - os psicanalistas e semiólogos que registraram cada signo e sintoma e que querem reduzir a organização múltipla do desejo à lei binária  da estrutura e da falta.
3-Enfim, o inimigo maior, o adversário estratégico (já que o oposição de Anti-Édipo a seus outros inimigos constitui antes um engajamento tático): o fascismo .E não apenas o fascismo histórico de  Hilher e Mussoline que se soube tão bem  mobilizar e utilizar  o desejo de massas - mas também o fascismo que está em todos nós , que assombra nosso espirito e nossas condutas cotidiana as , o fascismo que nos amar o poder, desejar esta coisa mesma que nos domina e  nos explora.
Eu diria que O Anti-Édipo ( que seus autores me perdoem ) é um livro ético , o primeiro livro de ética que foi escrito na França desde há muito tempo (é talvez a razão pela qual o seu sucesso não se limitou a um -Leitorado Particular-: ser anti-édipo tornou-se um estilo  e vida , um modo de pensamento e de vida). Como fazer para não crê ser um militante revolucionário ? Como Desembaraçar nosso discursos e nosso atos, nosso coração e nosso prazeres do fascismo? Como caçar o fascismo que se instaurou em nosso comportamento ? Os moralistas cristãos procuravam os traços de carne  que estavam alojados nas dobras da alma . Deleuze e Guattari , por sua parte, vigiam os traços mais ínfimos do fascismo no corpo.
Rendendo uma modesta homenagem a S.Francisco de Salles*,pode-se dizer que o Anti-Édipo é uma introdução à vida não-fascista.
Esta arte de viver, contrária a todas as formas de fascismo quer estejam já instaladas ou próximas do ser, se faz acompanhar de um certo numero de princípios essências , que eu resumiria com se segue , se tentasse fazer deste grande livro um manual ou um guia da vida cotidiana.
-libere a ação politica de toda forma paranoica unitária e totalizante.
-faça crescer a ação , o pensamento e os desejos por proliferação , justaposição e disjunção, antes que por submissão e hierarquização piramidal.
-libere-se das velhas  categorias do negativo (a lei, o limite, a castração, a lacuna) que o pensamento ocidental por tanto tempo manteve sagrado enquanto forma de poder e de modo de acesso à realidade .Prefira o que é positivo e múltiplo , a diferença à uniformidade , considere que o que é produtivo não é sedentário, mas nômade.
-Não imagine  que precise ser triste para ser militante, mesmo se a coisa que combatemos é abominável.É  o elo do desejo á realidade ( e não sua fuga nas formas de representação) que possui uma força revolucionária.
-Não utilize o pensamento para dar a uma pratica politica um valor de verdade ;nem a ação politica para desacreditar um pensamento , como se ele não fosse se não pura especulação . Utilize a pratica politica como um intensificador ,e a analise como um multiplicador das formas e dos domínios de intervenção  da ação politica.
-Não exija da politica que ele a restabeleça os direitos dos indivíduos, tais como a filosofia os definiu.O individuo é produto do poder.O que é preciso é -Desindividualizar-pela  pela multiplicação e pelo deslocamento , pelo agenciamento de combinações diferentes.O grupo não deve ser o elo orgânico que une os indivíduos hierarquizados, mas um constante -Desindividualização-.
-Não se apaixone pele poder.
Poder-se ia mesmo dizer que Deleuze e Guattari gostam tão do poder que procuram neutralizar os efeitos do poder ligados a seu próprio discurso. Dai os Jogos e armadilhas que se encontram um pouco em todo o livro , e que fazem de sua tradução uma verdadeira prova de força. Mas não são as armadilhas familiares da retórica , aquelas que procuram seduzir o leitor sem que ele esteja consciente da manipulação,e acabam por ganhá-lo para a causa dos autores contra a sua vontade. As armadilhas de O Anti-Édipo são aquelas do humor :tantos convenientes a se deixar expulsar , a autorizar o adeus  ao livro em fechando a porta . O livro leva muitas vezes a pensar que ele é senão humor  e jogo  lá onde, no entanto , qualquer coisa de essencial acontece,qualquer coisa que é da maior seriedade: caça a todas  as formas de fascismo ,deste aquele s, colossais , que nos  circundam e nos comprimem, até as formas pequenas que fazem a amarga tirania de nossas vidas cotidianas.

*Homem da igreja do sec.XVII, que foi cardeal de Genebra.É conhecido por sua Introdução a vida devota.

quarta-feira, 26 de março de 2014

Nota Biográfica - Filósofo em questão Gilles Deleuze (1925-1995)

Gilles Deleuze nasceu em 18 de janeiro de 1925 , em Paris numa família de classe media . Perdeu seu único irmão , mais velho do que ele, durante a luta contra ocupação nazista. Gilles se apaixonou-se por literatura , mas descobriu a filosofia nas aulas do professor Vial , no liceu  Carnot , em 1943 , o que levou à Sorbonne   no ano seguinte , onde obeteve o diploma de Estudo s Superiores em 1947 com um estudo sobre David Hume (publicado no liceu de Amiens, no de Orleans e no Louis-Le-Ganrand, em Paris.Já casado com a tradutora Fanny Grandjouan em 1956, com quem teve dois filhos, trabalhou como assistente em História da Filosfia na Sorbone entre 1957 e 1960. Foi professor pesquisador do CNRS até 1964, ano que passou a lecionar na faculdade de Lyon , Lá permanecendo até 1969. Alem de Jean Paul Sartre, teve como profesores Ferdinand Alquipe, Georges canguilhem, Maurice de Gandillac,Jean Hyppolite e Jean Wahl. Manteve-se amigo dos escritores Michel Tournier , michel butor, jean-pierre faye, além dos irmãos jacques e Claude Lanz mann e de O.R d'Allones, J-P Bamberguer e François Chatêlet. Em 1962 teve seu primeiro encontro com Michel Foucault, a quem muito admirava e com quem teve trocas teóricas e politicas. A partir de 1969, por forças dos desdobramentos de Maio de 68, firmou uma sólida produtiva relação com Felix Guattari, de quem resultaram livros fundamentais como  O Anti Edipo (1972), Mil platôs (1980) ou o que é Filosofia?(1991). Em 1995, quando o corpo já doente não pode sustentra a vitalidade de seus encontros, o filósofo decide conceber a própria morte: seu suicidio ocorre em Paris a 4 de Novembro desse ano. O Conjunto de sua Obra- em que se destacam ainda os livros Diferença e Repetição (1968), Logica do Sentido (1969), Imagem e Movimento(1983) Imagem e Tempo (1985), Critica e Clinica (1993), entre outros - deixa ver, para alem da pluralidade de conexões que teceu entre filosofia e seu "fora , a impressionante capacidade de trabalho do autor , bem como sua disposição escrita conjunta , e até coescrita , como é o caso de livros assinalados com Guattari.

quarta-feira, 19 de março de 2014

Foucault , Deleuze: um dialogo fecundo e ininterrupto

Foucault , Deleuze: um dialogo fecundo e ininterrupto

Gilles Deleuze e Michel Focault encontraram-se em 1963. Era  a véspera da aparição de Nietzsche.Michel Foucault queria trazer Gilles Deleuze como professor para a Universidade  de Clemont-Ferrand, onde ele mesmo ensinava. A coisa não se realizou, tendo o ministério da Educação preferido nomear Roger Garaudy para este cargo. Mais tarde, em 1969, Gilles Deleuze viria a substituir Michel Focault na Universidade de  Vincennes –PRIS VIII.
Uma profunda amizade, misturada de um grande respeito, ligará os dois homens, cada um nunca deixando d estar atento ao trabalho do outro onde ele sabia encontra ecos do seu próprio pensamento. Em novembro de 1970, Michel Foucault  fará ,na revista –Critique-, uma exposição de Diferença e Repetição e Lógica do Sentido:, escrevia Michel Foucault , “de dois livros que me parecem grandes entre os grandes.Tão grandes, sem duvida, que é difícil falar deles  e que poucos o fizeram. Creio que durante muito tempo esta obra pairará sobre nossas cabeças, em ressonâncias enigmáticas com a de Klossowski, outro sinal maior e marcante. Mas um dia talvez, o século será Deleuziano”. E, numa note em Surveiller et Punir  (p.20) Michel Foucault  escrevia:  “de qualquer forma , eu não saberia medir em referência ou citações o que este livro deve a Gilles Deleuze e a seu trabalho com Felix Guattari”. Ainda na revista –Critique lugar privilegiado do seu diálogo, Gilles Deleuze fará a exposição de Arqueologia do Saber –“um novo arquivista”- e de Vigiar e Punir – “escritor ou não, um novo cartógrafo”.
A proximidade de Gilles Deleuze e Michel Focault eram também, política: na véspera de maio de 68 , Gilles Deleuze juntar-se-á ao grupo de informações sobre as Prisões  (G.I.P) principalmente animado por Michel Foucault. E numerosas fotos as apresentam juntos nas manifestações de intelectuais contra abusos policiais e judiciários.
Momento privilegiado desta conveniência : a entrevista aparecida em 1972, no número de “L’Arc” consagrando a Gilles Deleuze onde os dois filósofos, cada um no seu próprio estilo , analisam a transformação das relações teórico-práticas características da nova conjuntura política.
Este dialogo necessário devia prosseguir depois da morte de Foucault (1984).Gilles Deleuze consagra-lhe –á o seu penúltimo curso e publicará, em 1987, o livro maior sobre Michel Foucault : é, diz ele mesmo, o livro que ele teria gosto de escrever com ele.
*Artigo traduzido e reiterado da revista –Magazine litteraire- n º 257,set/ 88.