“É
curioso que a palavra "fé" sirva para designar um plano que vira imanência.
Mas, se o cavaleiro é o homem do devir, há cavaleiros de toda espécie. Não
existe até cavaleiros da droga, no sentido em que a fé é uma droga, muito
diferente do sentido em que a religião é um ópio? Esses cavaleiros pretendem
que a droga, em condições de prudência e de experimentação necessárias, é
inseparável da instauração de um plano. E nesse plano, não só conjugam-se
devires-mulher, devires-animais, devires moleculares, devires-imperceptível,
mas o próprio imperceptível torna-se um necessariamente percebido, ao mesmo
tempo em que a percepção torna-se necessariamente molecular: chegar a buracos,
microintervalos entre as matérias, cores e sons, onde se precipitam as linhas
de fuga, linhas do mundo, linhas de transparência e de secção”.
“Mudar
a percepção; o problema está colocado em termos corretos, porque
ele dá um conjunto pregnante "da" droga, independentemente das distinções
secundárias (alucinatórias ou não, pesadas ou leves, etc.). Todas as
drogas concernem primeiro as velocidades, e as modificações de velocidade.
O que permite descrever um agenciamento Droga, sejam quais forem
as diferenças, é uma linha de causalidade perceptiva que faz com que: 1)
o imperceptível seja percebido, 2) a percepção seja molecular, 3) o desejo invista
diretamente a percepção e o percebido. Os americanos da beat generation
já tinham se engajado nessa via, e falavam de uma revolução molecular
própria à droga.”
“mais
uma vez, o problema
está bem colocado quando se diz que a droga faz perder as formas e
as pessoas, faz funcionar as loucas velocidades de droga e as prodigiosas lentidões
do após-droga, acopla umas às outras como lutadores, dá à percepção
a potência molecular de captar microfenômenos, microoperações, e
dá ao percebido a força de emitir partículas aceleradas ou desaceleradas, segundo
um tempo flutuante que não é mais o nosso, e hecceidades que não são
mais deste mundo: desterritorialização, "eu estava desorientado..." (percepção
de coisas, de pensamentos, de desejo, onde o desejo, o pensamento,
a coisa invadiram toda a percepção, o imperceptível enfim percebido).
Nada mais que o mundo das velocidades e das lentidões sem forma,
sem sujeito, sem rosto. Nada mais que o ziguezague de uma linha, como
"a correia do chicote de um carroceiro em fúria", que rasga rostos e paisagens.
Todo um trabalho rizomático da percepção, o momento em que desejo
e percepção se confundem.”
“Esse
problema de uma causalidade específica é importante. Enquanto se invoca
causalidades mais gerais ou extrínsecas, psicológicas, sociológicas, para
dar conta de um agenciamento, é como se não se dissesse nada. Hoje instaurou-se
um discurso sobre a droga que só faz agitar generalidades sobre o
prazer e a infelicidade, sobre as dificuldades de comunicação, sobre causas que
vêm sempre de outra parte. Mais finge-se compreender um fenômeno quanto
mais se é incapaz de captar sua causalidade própria em extensão. Sem
dúvida, um agenciamento jamais comporta uma infra-estrutura causai. Ele
comporta, no entanto, e no mais alto ponto, uma linha abstrata de causalidade
específica ou criadora, sua linha de fuga, de desterritorialização,
que só pode efetuar-se em relação com causalidades gerais
ou de uma outra natureza, mas que não se explica absolutamente por elas.
Nós dizemos que os problemas de droga só podem ser captados no nível
onde o desejo investe diretamente a percepção, e onde a percepção.A
droga aparece então como o agente desse devir. É aí que haveria uma fármaco-análise
que seria preciso ao mesmo tempo comparar e opor à psicanálise,
pois em relação a esta há motivos para fazer dela ao mesmo tempo
um modelo, um oposto e uma traição. A psicanálise, com efeito, pode ser
considerada como um modelo de referência porque, em relação a fenômenos
essencialmente afectivos, ela soube construir o esquema de uma causalidade
própria, distinto das generalidades psicológicas ou sociais ordinárias.
Mas esse esquema causai permanece tributário de um plano de organização
que nunca pode ser captado por si mesmo, sempre concluído de outra
coisa, inferido, subtraído ao sistema da percepção, e que recebe precisamente
o nome de Inconsciente. O plano do Inconsciente permanece, portanto,
um plano de transcendência, que deve caucionar, justificar a existência
do psicanalista e a necessidade de suas interpretações. Esse plano do
Inconsciente opõe-se molarmente ao sistema percepção-consciência e, como
o desejo deve ser traduzido para
esse plano, ele próprio é acorrentado a
robustas molaridades como à face oculta do iceberg (estrutura de Édipo ou rochedo
da castração). Então, quanto mais o imperceptível opõe-se ao percebido
numa máquina dual, mais ele permanece imperceptível. Tudo muda
num plano de consistência ou de imanência, que se encontra necessariamente
percebido por conta própria ao mesmo tempo em que é construído:
a experimentação substitui a interpretação; o inconsciente tornado
molecular, não figurativo e não simbólico, é dado enquanto tal às micropercepções;
o desejo investe diretamente o campo perceptível onde o imperceptível
aparece como o objeto percebido do próprio desejo, "o nãofigurativo do
desejo".
"O
inconsciente não designa mais o princípio oculto do plano de organização
transcendente, e sim o processo do plano de consistência imanente,
à medida que ele aparece em si mesmo ao longo de sua construção,
pois o inconsciente está para ser feito e não para ser reencontrado.
Não há mais uma máquina dual consciência-inconsciente, porque
o inconsciente está, ou melhor, é produzido aí onde a consciência é levada
pelo plano. A droga dá ao inconsciente a imanência e o plano que a psicanálise
não parou de deixar escapar (pode ser, desse ponto de vista, que o
célebre episódio da cocaína tenha marcado uma virada, forçando Freud a renunciar
a uma aproximação direta do inconsciente). Mas, se é verdade que a
droga remete a essa causalidade perceptiva molecular, imanente, resta toda a
questão de saber se ela consegue efetivamente traçar o plano que condiciona
seu exercício. Ora, a linha causal da droga, sua linha de fuga, não para
de ser segmentarizada na forma, a mais dura possível, da dependência, do
dopar-se, da dose e do traficante.”
“As
desterritorializações permanecem relativas, compensadas pelas reterritorializações
as mais abjetas, de modo que o imperceptível e a percepção
não param de perseguir-se ou de correr um atrás do outro sem nunca
acoplar-se de fato. Em vez de os buracos no mundo permitirem que as próprias
linhas do mundo fujam, as linhas de fuga enrolam-se e põem-se a rodopiar
em buracos negros, cada drogado em seu buraco, grupo ou indivíduo,
como um caramujo. Caindo mais no buraco do que no barato. As micropercepções
moleculares são recobertas de antemão, conforme a droga considerada,
por alucinações, delírios, falsas percepções, fantasmas, surtos paranóicos,
restaurando a cada instante formas e sujeitos, como fantasmas ou duplos
que não parariam de obstruir a construção do plano.”
“Em vez de fazer um
corpo sem órgãos suficientemente rico ou pleno para que as
intensidades passem, as drogas erigem um corpo vazio ou vitrificado, ou um
corpo canceroso: a linha causai, a linha criadora ou de fuga, vira
imediatamente linha de morte e de abolição. A abominável vitrificação das
veias, ou a purulência do nariz, o corpo vítreo do drogado. Buracos negros e
linhas de morte, as advertências de Artaud e de Michaux se juntam (mais
técnicas, mais consistentes do que o discurso sócio psicológico, ou psicanalítico, ou
informacional, dos centros de assistência e de tratamento).
Artaud dizendo: você não evitará as alucinações, as percepções errôneas,
os fantasmas descarados ou os maus sentimentos, como tantos buracos negros
nesse plano de consistência, pois tua consciência irá também nessa direção
cheia de armadilhas56. Michaux dizendo: você não será mais senhor de
tuas velocidades, você entrará numa corrida louca do imperceptível e da
percepção, que gira mais em falso ainda porque tudo aí é relativo”.
“Você irá inchar de si
mesmo, perder o controle, estar num plano de consistência, num
corpo sem órgãos, mas exatamente no lugar onde você não parará de
deixá-los escapar, esvaziar, e de desfazer o que você faz,
farrapo imóvel. Que
palavras mais simples do que "percepções errôneas" (Artaud), "maus
sentimentos" (Michaux), para dizer no entanto a coisa mais técnica: como a
causalidade imanente do desejo, molecular e perceptiva, fracassa no
agenciamento-droga. Os drogados não param de recair naquilo de que eles queriam
fugir: uma segmentaridade mais dura à força de ser marginal, uma
terrritorialização mais artificial ainda porque ela se faz sobre substâncias químicas,
formas alucinatórias e subjetivações fantasmáticas. Os drogados podem ser
considerados como precursores ou experimentadores que retraçam
incansavelmente um novo caminho de vida; mas mesmo sua prudência não tem as
condições da prudência. Então, ou eles recaem na coorte de falsos
heróis que seguem o caminho conformista de uma pequena morte e um longo
cansaço. Ou então, pior ainda, eles só terão servido para lançar uma tentativa
que só pode ser retomada e aproveitada por aqueles que não se drogam ou que
não se drogam mais, que retificam secundariamente o plano sempre abortado
da droga, e descobrem pela droga o que falta à droga para construir um
plano de consistência. Seria o erro dos drogados o de partir do zero a cada
vez, seja para tomar droga, seja para abandoná-la, quando se precisaria
partir para outra coisa, partir "no meio", bifurcar no meio? Conseguir
embriagar-se, mas com água pura (Henry Miller). Conseguir drogar-se,
mas por abstenção, "tomar e abster-se, sobretudo abster-se", eu
sou um bebedor de água (Michaux). Chegar ao ponto onde a questão não é mais
"drogar-se ou não", mas que a droga tenha mudado suficientemente as
condições gerais da percepção do espaço e do tempo, de modo que os
não-drogados consigam passar pelos buracos do mundo e sobre as linhas de fuga,
exatamente no lugar onde é preciso outros meios que não a droga. Não é a droga
que assegura a imanência, é a imanência da droga que permite ficar sem
ela. É covardia, coisa de aproveitador, esperar que os outros tenham se
arriscado? Antes retomar uma empreitada sempre pelo meio, mudar seus
meios. Necessidade de escolher, de selecionar a boa molécula, a molécula
de água, a molécula de hidrogênio ou de hélio. Não é uma questão de
modelo, todos os modelos são molares: é preciso determinar as moléculas e as
partículas em relação às quais as "vizinhanças" (indiscernibilidade,
devires) engendram-se e se definem. O agenciamento vital, o
agenciamento-vida, é teoricamente ou logicamente possível
com toda espécie
de moléculas."
"Não se trata de conformar-se a um modelo, mas de insistir numa linha. Os drogados não escolheram a boa molécula ou a boa linha. Toscos demais para captar o imperceptível, e para devir imperceptíveis, eles acreditaram que a droga lhes daria o plano, quando é o plano que deve destilar suas próprias drogas, permanecer senhor das velocidades e das vizinhanças.”
"Não se trata de conformar-se a um modelo, mas de insistir numa linha. Os drogados não escolheram a boa molécula ou a boa linha. Toscos demais para captar o imperceptível, e para devir imperceptíveis, eles acreditaram que a droga lhes daria o plano, quando é o plano que deve destilar suas próprias drogas, permanecer senhor das velocidades e das vizinhanças.”
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